@article{Jamoulle_2013, place={Rio de Janeiro}, title={Comentário sobre o artigo de Pizzanelli}, volume={9}, url={https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/865}, DOI={10.5712/rbmfc9(31)865}, abstractNote={<p>Logo após o nascimento de seu quinto filho, minha irmã visitou seu ginecologista. Ela tinha sentido um caroço em seu seio e estava inquieta. Ele a tranquilizou. Ela acreditou. Foi na Espanha, nos anos 1980. Minha irmã era advogada e mãe de família. Uma mulher muito ocupada. Ela confiou em seu médico. Era um mau médico. Quinze anos depois ela faleceu de caquexia neoplásica após incontáveis sessões de radioterapia, quimioterapia, testes diagnósticos e complicações de toda a natureza, rodeada por seus filhos e em sofrimento.</p><p class="Pa8">Quando o próprio médico trabalha com esse tipo de memória torna-se muito sensível e procura por todos os meios evitar que seus pacientes vivam um calvário tão terrível como esse. Eu era muito organizado na minha prática profissional: nós ensinávamos às mulheres a autoapalpação das mamas, tínhamos uma agenda de datas para avisá-las quando deveriam fazer suas mamografias de rastreio e ficávamos satisfeitos em encontrar, de tempos em tempos, um câncer não muito avançado, ficando a impressão de termos salvo uma paciente, o que nos fazia bem.</p><p class="Pa8">A Bélgica não tem um sistema de saúde organizado, e o rastreamento era - e ainda é - feito de modo pitoresco e episódico. O estado, os hospitais ou alguns médicos de família organizados lançam campanhas país afora, que sensibilizam <em>sempre </em>as mesmas mulheres e “salvam” algumas delas, confiantes por terem implementado um sistema de medicina dita preventiva.</p><p class="Pa8">Este sistema não influencia o todo e a taxa de mortalidade por câncer de mama não mudou em todos esses anos. O recrutamento precoce para rastreio apenas aumenta o período consciente da presença do problema. Os cânceres agressivos sempre matam muito rapidamente e nos deixam desamparados e atônitos.</p><p class="Pa8">Em seu artigo “<em>Principios Éticos y Prevención Cuaternaria: ¿es posible no proteger el ejercicio del principio de autonomía</em>?” o colega Pizzanelli relata um projeto sistemático de rastreamento que o seu país, o Uruguai, planeja fazer, com pressão para sua obrigatoriedade e risco de perder o emprego para as mulheres que se recusarem a fazê-lo.</p><p class="Default">Em um momento, quando, mundo afora, crescem vozes contrárias ao rastreamento em massa, ou, em que os médicos generalistas procuram se organizar para identificar e acompanhar as mulheres sob risco, os políticos, movidos pelo seu desejo de fazer o bem, ou provavelmente somente por fazer, dão início a um sistema coercivo e obsoleto. Esta atitude é politicamente arriscada, eticamente injustificável e cientificamente ultrapassada.</p><p>Politicamente arriscada porque vai incorrer em quantidades significativas de orçamento da saúde em uma sangria administrativa (prevenir, em saúde pública, é primeiramente organizar) e em grandes investimentos para a aquisição de equipamentos caros. Ao mesmo tempo, se estabelecerá um clima de controle e desconfiança que pode prejudicar a convivialidade de uma sociedade.</p><p>Eticamente injustificável porque adoecimento e morte estão na ordem da intimidade e do simbólico, assim como a decisão de se examinar um corpo - ou pessoas não doentes - para conhecimento, pertence somente à própria pessoa e não à sociedade. Controlar os corpos é uma mão posta inaceitavelmente sobre o destino humano, que vem reduzir o adoecimento a um ponto, a um erro para o qual o corpo social se autoriza a punir.</p><p>Cientificamente obsoleta, porque agora sabemos que as chamadas atualizações de rastreamento encontram cânceres lentos, que provavelmente não teriam matado a pessoa, e fracassam com os cânceres rápidos e agressivos, que são de fato mortais. Esta atitude é fundamentada em uma crença dos anos pós-guerra e seu vocabulário militar. Combater o câncer e pensar que ‘ao se antecipar seria possível derrotá-lo’ foi o <em>leitmotiv </em>de todas as campanhas de massa desde então.</p><p>Sabe-se agora que os seres humanos estão vivendo com câncer, que eles algumas vezes conseguem se defender por si próprios e que nem todos eles morrem. Sabe-se também que algumas mulheres estão sob maior risco do que outras e que a escuta atenta e o registro cuidadoso de suas histórias familiares permite identificar grupos de risco para os quais é importante se aconselhar o rastreio. Entretanto, investir na comunicação não tem a mesma visibilidade, ou o mesmo retorno, que o investimento em tecnologias, e requer muita coragem para os políticos decidirem investir em um sistema, primeiramente competitivo, eficiente e bem administrado, que irá permitir colocar o conhecimento dos grandes números dentro das consultas individuais dos atores dos cuidados primários.</p><p>Dr. Pizzanelli é um colega corajoso. Ele afirma em alto e bom som o que muitas pessoas estão pensando e por isso deve ser apoiado, não somente por seus pares em seu próprio país, mas também por todos os nossos colegas mundo afora que pensam que a ciência também serve para cultivar a dúvida e desconfiar de seus próprios erros.</p><p>Tradução: Josane Araujo Norman (Editora adjunta RBMFC).</p><p class="Default">Revisão técnica: Dr. André Luís Andrade Justino (SMS-Rio de Janeiro).</p>}, number={31}, journal={Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade}, author={Jamoulle, Marc}, year={2013}, month={dez.}, pages={177–179} }