De pessoa a pessoa passando pela doença

Autores

  • Gustavo Diniz Ferreira Gusso Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP
  • Paulo Poli Neto Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, PR

DOI:

https://doi.org/10.5712/rbmfc10(36)1218

Resumo

A atual edição da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC) traz uma variedade de artigos bastante representativa da atuação dos profissionais que fazem a Atenção Primária à Saúde (APS) no dia a dia. E a RBMFC deseja ser cada vez mais um instrumento de divulgação de conhecimentos adquiridos na linha de frente.

Os dois casos clínicos lidam com temas bastante caros a atuação do médico de família e comunidade. O artigo de herpes zoster trata de um problema frequente na prática mas cuja apresentação não foi típica. Muitas vezes escutamos nos bancos da faculdade que a apresentação da doença foi “típica” ou “de livro”. Mas aprendemos na Medicina de Família e Comunidade (MFC) que cada pessoa é única e que os problemas de saúde aparecem de diferentes maneiras em cada pessoa. Isso faz da pratica na APS complexa e carregada de incertezas. Se por um lado vemos problemas que se repetem, por outro lidamos com pessoas e seus problemas únicos. Talvez não seja possível entender exatamente porque um adolescente saudável teve um herpes zoster extenso. A solução para essa incerteza não é tampouco procurar exaustivamente e às vezes até de forma constrangedora por alguma imunodeficiência. O segundo caso clinico trata de outro tema crucial na prática diária: efeito colateral de medicamento. A quantidade de medicamentos usada sem um motivo que justifique faz com que aumente a chance de que o risco seja maior que o benefício. Portanto, é mandatório que o profissional, em especial o médico, trabalhe com alguma ferramenta de pesquisa de efeito colateral a tiracolo como o Epocrates, o British National Formulary (BNF) ou mesmo o Medscape. Por causa da elevada incidência, descartar efeito colateral deve ser intrínseco a qualquer consulta. Efeitos colaterais que são também sintomas frequentes como náusea, tontura e diarreia dificultam a abordagem e fazem com que muitos profissionais “neguem” o tema. Essa negação pode custar o diagnóstico de um efeito colateral mais raro e específico como a osteonecrose mandibular em pacientes que fazem uso de medicamentos bifosfonados.

Alguns artigos tratam de ferramentas do MFC como prevenção quaternária e o registro clinico. A forma de registro mais consagrada na Atenção Primária tem sido o Prontuário Médico Orientado por Problemas (PMOP) e seu consequente método SOAP1. Há muita controvérsia da quantidade de dados que devem ser estruturados e a quantidade que deve ser em texto livre. O artigo aborda essa dicotomia através de um estudo transversal de 318 consultas. Se por um lado os dados estruturados via, por exemplo, Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP)2, ajudam na avaliação da qualidade da atenção e no cálculo da probabilidade pré-teste, por outro tomam tempo que poderia ser usado para descrição de texto livre, que segundo o autor, ajuda na compreensão do que de fato se fez na consulta. É a constante busca da informação na forma certa e na medida certa, nem pouca nem muita. Qual será o erro mais frequente? Informação de menos ou informação em excesso e desnecessária? Ou o que é considerado um registro adequado? O caminho é voltar a investir no texto livre e em mecanismos que consigam classificar e estruturar o texto? Por enquanto não há aparentemente grandes respostas e resultados nesse campo. Os dados estruturais continuam sendo importantes para analises futuras com todas as limitações apontadas.

Por fim, a prevenção quaternária que tem sido uma ferramenta bastante estudada no Brasil e no mundo é tratada no artigo que usa o auto-exame da mama e dos testículos como exemplo. Tem sido frequente movimentos que tentam fazer com que a saúde do homem siga o mesmo caminho desastroso que seguiu a saúde da mulher com excessos de intervenções médicas. Não bastasse o fracasso da reposição hormonal feminina para alertar os médicos e a população, há um intenso movimento de marketing pela “reposição de testosterona”. Algo similar se passou com outros rastreamentos sobre os quais talvez se possa traçar algum paralelo como câncer de colo de útero / câncer de pênis e auto exame da mama / auto exame dos testículos.  Em geral os rastreamentos femininos têm levado “vantagem científica” o que fortalece a cultura do homem não procurar o médico e a retroalimentação da necessidade de “rastreamentos” como se a única causa de morte precoce fosse “a falta de rastreamento e a pouca ida ao médico”. Nesse contexto as condições sociais, as relações familiares, o estresse, a relação com o trabalho, a dieta, e todos os determinantes sociais de saúde são meros “detalhes”. 

Desta forma, a prevenção quaternária, entendida como ferramenta de pesquisa e ação, está relacionada ao sobrediagnóstico na medida que ambos procuram evitar intervenções que causem mais danos do que benefícios. No último congresso que tratou especificamente de sobrediagnóstico3, alguns pesquisadores fizeram com que acendesse uma luz amarela. Muitos cientistas estão procurando, através de testes genéticos, estratificar ou personalizar o tratamento. Ou seja, hoje só se sabe estatisticamente e retroativamente a quantidade de sobrediagnósticos produzida por determinados rastreamentos. Estes cientistas esperam resolver o empecilho com testes genéticos. Assim, desejam que no futuro próximo não haja câncer de mama mas “o câncer de mama da Senhora X cujo tratamento é o medicamento Y”. Enfim, alguns nomes que tem sido usados nessa reinvenção da pesquisa clínica são “medicina estratificada” e “medicina personalizada”4. Esta estratégia dificulta a realização de ensaios clínicos randomizados já que “cada pessoa tem um câncer diferente”.  É a distorção de um dos mais importantes princípios da medicina de família e comunidade: entender que pessoa tem a doença é diferente de entender que genoma a pessoa com a doença tem. 

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Biografia do Autor

Gustavo Diniz Ferreira Gusso, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP

Doutor em Ciências Médicas

Professor da Disciplina de Clinica Geral e Propedêutica da Universidade de São Paulo

Paulo Poli Neto, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba, PR

Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Paraná (2001), residência em Medicina de Família em Comunidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR, 2004), mestrado em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006), doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011) com estágio de doutorado em Antropologia Médica na Universitat Rovira i Virgili (Tarragona, Espanha, 2009-2010). Professor do Departamento de Saúde Comunitária - UFPR. http://lattes.cnpq.br/3817856676959820

Referências

Weed LL. Medical records that guide and teach. N Engl J Med. 1968;278:593-600, 652-7.

World Organization of National Colleges, Academies, and Academic Associations of General Practitioners/Family Physicians Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP 2) / Elaborada pelo Comitê Internacional de Classificação da WONCA (Associações Associations of General Practitioners/Family Physicians Classificação Internacional de Atenção Primária (CIAP 2) / Elaborada pelo Comitê Internacional de Classificação da WONCA (Associações Nacionais, Academias e Associações Acadêmicas de Clínicos Gerais/Médicos de Família, mais conhecida como Organização Mundial de Médicos de Família) ; Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição, Gustavo Diniz Ferreira Gusso. – 2. ed. – Florianópolis : Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 2009.

Preventing Overdiagnosis [home page on the Internet]. BMJ. [Acesso em 24 de Sep de 2015]. Disponível em http://www.preventingoverdiagnosis.net/

Realising the potential of stratified medicine [home page on the Internet]. Academy of Medical Sciences. [Acesso em 24 de Sep de 2015]. Disponível em https://www.acmedsci.ac.uk/viewFile/51e915f9f09fb.pdf

Publicado

2015-09-30

Como Citar

1.
Gusso GDF, Poli Neto P. De pessoa a pessoa passando pela doença. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 30º de setembro de 2015 [citado 28º de março de 2024];10(36). Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1218

Edição

Seção

Editorial

Plaudit